Não tire a bigorna do ferreiro. O piano do pianista. Não tire a poesia do poeta. A voz da cantora. Não limite o Saber. Não aprisione o Conhecimento. Quando lhe proibiram caneta, tinteiro, papel, o Marques de Sade misturou urina com bosta para escrever nas paredes da prisão livros que sacudiram a Europa puritana.
A Inquisição, o Nazismo, o Stalinismo, a Revolução Cultural na China, todas as ditaduras pesadas ou disfarçadas, castram, destroem, matam. Livros, partituras, fotos, arderam em fogueiras. As primeiras vítimas são sempre os que criam, pensam, leem, ensinam. Dedico este RH aos Edson Miranda do Brasil. Aos Professores e Mestres deste nosso país embrutecido por governantes que não respeitam não valorizam Criadores e Produtores de Saber e Conhecimento.
Desperdiçamos 30% de grãos. 80% de Saber e Experiência.
Do plantio, colheita, armazenamento, transporte, o país desperdiça 30% de grãos. Poucos sabem que o Brasil desperdiça 80% de seu “plantio” na Educação, Ciência, Tecnologia. Não temos sistema, códigos, leis, para agrupar, manter, usar, experiência acumulada em anos escolares, universitários, empresariais.
O convívio, o intercâmbio, de ex-alunos é raro. O Estado-babá não incentiva a individualidade criativa. O mérito. A disputa. O desafio. Não cria vínculos cívicos. O que é de graça não é bem valorizado. E assim as alternativas são escassas. As possibilidades distantes.
È raro no país empresário, ex-aluno, contribuir financeiramente com a sua universidade como os americanos fazem, com fartura. Bill Gates anunciou que deixará 95% de sua fortuna para filantropia, universidades, institutos, pesquisa.
Não temos tradição nem cultura em proteger nossa reserva técnica, estratégica, do Saber. Não há, como nos países de sucesso tecnológico, científico, incentivo à Permanência, à Experiência, ao “Ancião” do Saber. Aos “Pajés” de Códigos e Sinais.
Eles recebem para não fazer nada. Apenas, pensar.
Famosas universidades têm Clubes e Associações mantidas por empresas. Ex-alunos orgulham-se de sua Alma Mater. Sua Cambridge, Oxford, Harvard, Yale, Soborne, Upsala, Coimbra. È comum herança para universidades construir alas, laboratórios, ginásios. Bolsas como incentivo ao mérito. A Princeton mantêm “cérebros” em sua folha de pagamento que não “fazer nada”. Apenas pensam.
A bicicleta. O lago. As árvores. O silêncio. Como o berço, o entorno universitário deve estar limpo, sereno, seguro, para o ato de pensar e produzir Conhecimento.
No Brasil, aposentou, não serve mais. Inteligência e Experiência são descartadas. O Sistema, as Instituições fragilizadas, o Desuso de Princípios e Valores, a Malandragem política, o uso safado de Ideologias, a corrupção estatal, fazem Professores, Cientistas, Artistas, Militares, Instrutores, ficarem 20/30 anos, fora do contexto. No ostracismo. No vazio existencial. Ate à morte prematura. Conheço Centros do Saber que reverenciam e se orgulham de seus Mestres de 70, 80, 90, 100 anos de idade.
Os da feitura do “pão” teórico tem imensa dificuldade em fazer a travessia da Academia para o Comércio. Para o Mercado eleitoral, onde se decide o futuro do bem estar pessoal, familiar. Ou seja, do “Rubicão” do Saber para o Negócio Político.
Edson Miranda nunca soube ser lobista. Saia do quadrado para o triângulo da arquitetura política com cálculos de economista. Foi menino prodígio do Mestre e Ministro Mário Henrique Simonsen. Ghost writer de senadores, governadores. Morreu como nasceu. Pobre. Imagem: Economista, o ministro Mario Henrique Simonsen gostava das deduções do Economista Baianinho de Poxoréu. Ambos fumavam e bebiam em quantidade industriais.
A professora Regina saiu de Poxoréu, a Rainha do Diamante-como os meus pais adotivos-para em Cuiabá dar “educação” aos meninos. Crescemos juntos na região do meretrício elegante. Edson, na ponta esquerda, na bolita, no buque, um craque.
O nosso relacionamento não foi contínuo. Ele foi para o Rio. Eu para Moscou. No governo de Mato Grosso quis leva-lo para onde ele sempre esteve: no circulo criativo do governador. Não deixaram. Estava carimbado para sempre como Cara da Direita.
Levei Edson a Plínio Salles (também recém-falecido), pensador, planejador, de equipes famosas, com quem eu havia criado o Brain Bank. Uma frase, uma ideia, no Caneco 70, Leblon, que Plínio levou adiante. Insisti para Edson Miranda reunir Homens Ideia e lançar em Cuiabá seminários “Brain Storm” e o Banco de Ideias de Mato Grosso.
Duas histórias.
Depois da primeira greve estudantil de Cuiabá com a mesma plataforma de hoje: meia passagem para estudantes nos ônibus e cinema. Já carimbado como o “vermelho” do Colégio Estadual eu saia aliciando adeptos para a criação de Grêmios Estudantis.
A cidade tinha três jardineiras do judeu Alexandre e o Cine Teatro. Quando apedrejamos o cinema que ajudava na nossa educação e cultura Edson estava ao meu lado.
Prestando atenção no baixinho ativo que a gente chamava de Edson Boca D’ Água, Amorésio de Oliveira, deputado comunista, baiano de Poxoréu, decidiu que eu devia cooptar Edson para as tarefas partidárias: distribuir o jornal A Voz Operária, participar das aulas de marxismo, vender coleções dos livros de Jorge Amado…
Menino eu ia passar as férias em Coitè onde vô Teresa tinha pensão e uns 20 homens no garimpo. Viagens na carroceria de caminhão. Em muitas delas com o deputado Amorèsio falando de Prestes, Stálin, Rússia, Pão, Terra e Liberdade, slogans do Partido Comunista Brasileiro. Paramos para atravessar a pinguela do Portão do Inferno. Amorésio apareceu com uma lata de cal. E desenhamos no paredão a foice e o martelo. Foi o meu batismo de líder estudantil, de “quadro simpatizante”. Anos depois e depois do quinto uísque Edson desandava a fazer piadas. Dizia: “Amoresio é o padrinho comunista do Jota capitalista”. Quando eu discursava temas nacionalistas ele inventou que eu era como a melancia: verde por fora e vermelho por dentro. Imagem: O deputado Amorésio de Oliveira, a seu lado,o deputado Rachid Mamede, campeão do voto de garimpeiros.
O Capital e o Cavaleiro da Esperança
Inventei uma estória e saímos das escadas da Igreja Matriz caminhando até ao ponto de ônibus no Coxipó da Ponte. Longe. Mas, a gente cruzava Cuiabá a pé, rindo, brincando, espiando, (não espionando), pelas frestas das grandes janelas as meninas trocarem roupas. “Você pode ser um quadro importante. Como Amorésio, somos de Poxoréu. Leia esse livrinho. È o Capital de Karl Marx. Leia também o Cavaleiro da Esperança, de Jorge Amado. Essas são suas primeiras tarefas”.
“E preciso de você pra gente entrar no Colégio São Gonçalo. Discuti feio com o padre Beiçola. Dom Camilo Faresin gosta de você. Precisamos criar Grêmio lá. Com o São Gonçalo será mais fácil entrar no Sagrado Coração de Jesus. Com mais dois Grêmios criaremos a ACES”.
Edson sumiu. Sua mãe, católica praticante, o proibiu de andar com Pachequinho, o Comunista. Anos mais tarde ele ria da minha fracassada tentativa de coopta-lo.
A plus valia azeita a engrenagem das civilizações
Eu: Edson, já naquele tempo você tinha consciência que era um Cara da Direita, um Reacionário ? Ele: Não. (sempre irônico, gozador) mas, a culpa é sua e de Marx. Quando terminei o Capital ouvi D. Bosco dizendo: “Isso não serve. Não entra nessa. Nunca vai dar certo”. Quem sabe lendo o Capital eu decidi estudar Economia para entender o maior equívoco de Karl Marx: Transformar a plus valia em pecado mortal. Em crime. A plus valia é o azeite que faz mover a engrenagem da vida, das civilizações”.
“Séculos” depois recebo em Nova York o deputado federal Júlio Campos. Falante. Confiante. Fomos à American Express em Wall Street. No carro, Julio com brilho nos olhos conclama: “Serei candidato ao governo. E vou ganhar. Você está falando com o futuro governador de Mato Grosso”.
Júlio Campos em campanha eleitoral. O cuiabano-embaixador Roberto Campos com Margareth Thatcher.
“Convidei o embaixador Roberto Campos (Londres) para estar na minha campanha como candidato ao Senado. Venha e te elegeremos deputado federal. Eu quero os dois cuiabanos mais famosos no mundo ao meu lado”. Famoso mesmo era Roberto Campos . Eu fiquei lembrado pela incomum trajetória Cuiabá/Moscou/Nova York em plena guerra fria. E conhecido pelas criações e eventos, de sucesso, que repercutiam do tambor do mundo. Telefonei de Nova York:
“Mas, Edson como vou encarar meus amigos num palanque ao lado de Roberto Campos. Eu organizei passeatas contra ele, o Entreguista. Não tenho reduto eleitoral familiar. Não tenho dinheiro para gastar nessa aventura”. Edson, curto e grosso: Dinheiro temos. Voto arranjamos. Pense Ideologia como se fosse uma morena cuiabana que você não vê e sente há muito tempo”. Júlio Campos ganhou. Roberto Campos foi para o Senado. Teria sido eu mais livre e feliz que hoje se estivesse ido para a Câmara Federal?
Edson: “Não foi fácil ver o Roberto com aquele sotaque de gringo confundindo Guiratinga com Guaratinguetá. Com Júlio promovendo os dois cuiabanos. Ele, embaixador de direito em Londres. Você embaixador de fato em Nova York. Roberto Campos foi para o Senado. Você iria para a Câmara Federal”.
O poeta Mayakovsky indignado pelos rumos que o Estado impunha à cultura, às artes em geral, minutos antes de se matar, escreveu: “Tirem-me tudo. Mas, não tirem a poesia de minha alma russa”.
As duas mortes de Edson Miranda
Aprendemos que temos Corpo e Alma. Portanto, o título deste RH deveria ser: As duas mortes de Edson Miranda. Por estar definhando eu via e enxergava Edson definhar. Várias vezes, perigosamente, com neblina, desci a serra de Chapada dos Guimarães para conversar com Edson. Ele foi o papo amigo nos meus momentos de fome de Saber. A solidão de Conhecimento, do Falar e do Ouvir Inteligência, é dilacerante. Leva à depressão. Ao alcoolismo. Às drogas. Ao suicídio. Sugiro cautela aos que se aventuram na viagem de “volta às raízes”, em busca das amizades e verdades juvenis. Podem frustrar a alma e machucar o corpo.
“Todos sabiam que Pedro e Paulo afiavam as facas de sangrar porcos para matar Santiago Násar. Todos sabiam da morte anunciada. Mas, não fizeram nada de concreto para proteger a vitima. E, por medo, comodismo, covardia, ninguém foi avisar Santiago. Preferiram vê-lo caminhar para a morte”.
Em Crônica de uma morte anunciada, Gabriel Garcia Marques, com quem abro este blog, fala do Tempo, da Eternidade da Vida, da Existência, de Sentimentos. “Todos poderiam ter atuado para salvar Santiago. Mas, tinham coisas mais importantes para fazer”.
O desrespeito do Reitor ao Saber, ao Diploma.
Muito mais que o álcool, o cigarro, o sobre-peso num corpo pequeno, foram o descaso, o desprezo, o achincalhe, desferidos pelo Reitor-Feitor do país ao Saber, ao Conhecimento, que perfuraram a alma e feriram de morte o seu coração com DNA garimpeiro. O professor, acadêmico, pensador, criador social, sofria ao ouvir: “Nunca li um livro. Não preciso de diploma universitário para governar o Brasil. Tenho experiência pra dar e vender. Não preciso dessa elite universitária de…”.
“O que fiz para merecer isso ? Para que valeu todo o esforço de minha existência e dedicação universitária ? Terminamos como inúteis. Desrespeitados. Humilhados em nosso próprio país. Sem espaço, sem ar. E foi justamente na universidade, nos centros do Saber, que o Reitor Chefe alavancou seus sonhos políticos e voos eleitorais. Na Rússia, no Brasil, em geral, na Universidade nasceu a “vanguarda do proletariado”. O Reitor Mor e seus “catedráticos” trocaram o Saber pela Ideologia. Fizeram do Campus zona eleitoral. Da cátedra mais alta ele desviou o Brasil dos centros de Tecnologia, Ciência, Pesquisa, Modernidade. Ao vangloriar-se que não” precisa de diploma escolar, de universidade para dominar o Brasil, dá exemplo incontestável do popular: “cuspiu no prato onde comeu”. Imagem: No centro, Edson Miranda ao lado do presidente João Figueiredo.
Insisti para passarmos o Ano Novo 2013 em Poxoréu. Rever o morro da Mesa, caminhar nas pedras de sua infância, lhe faria bem. Em março, a rouquidão o impedia de falar com clareza.
Em maio, antes de minha ida aos Estados Unidos, fui visitá-lo na mesma casinha herdada no Aráes, bairro central de Cuiabá. Sempre protegido por sua companheira Nice. Eu estava em Chicago quando soube de sua morte.
Pedro e Paulo continuam afiando as facas de sangrar porcos para a morte anunciada da Tecnologia, da Modernidade. Para mim-como para Edson-a morte do Saber é a mais dolorosa das mortes. A ida do amigo professor avisa que Ela de mim se aproxima, inapelavelmente.
Trilha sonora: Flávia Pires.
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